Você troca os nomes dos colegas, Você esquece de comprar água pra casa, Você já tá na expressa da Marginal, com chuva e trânsito, e percebe que esqueceu algo importante laaaaaaá no estacionamento do trabalho, Você pega a primeira à direita e dá um branco no caminho de retorno, Você esquece a roupa de molho no amaciante dois dias, Você esquece a chave de casa pro lado de fora da porta, Você esquece que não comprou comida e lembra que não tem janta, Você meio que esquece da dieta e decide pedir pizza – mas você pede pizza light (aham), Você desce pra pegar a pizza e esquece o cartão de crédito, Você volta, pega o cartão e esquece que o elevador social tá quebrado – e você leva uns bons minutos pra lembrar que esqueceu, Você passa o cartão e esquece a senha, Você relembra a senha e esquece da gorjeta.
Então vou fazer feito música chiclete que a gente quer cuspir da ponta da língua. Vou chamar outro som, virar o disco e te deixo com uma que por acaso tá na minha cabeça há dias também. Não me pergunte o motivo. Eu esqueci. Acho.
Não foi o motorista, não foi a lei da física, não foi o ABS, não foi minha destreza ao volante que me ajudou.
#Vou_tecontar que eu tava cruzando a Amaral Gurgel, embaixo do minhocão. Farol verde pra mim, eu seguia devagar. Estava escuro, a pista molhada, ele cruzou o farol vermelho e veio em alta (bem alta) velocidade. Quando avistei aquele carro a milhão, vi que não dava tempo de acelerar nem brecar.
Deduzi que ele ia entrar com força na minha porta direita, não tinha como escapar.
Sei lá por que nesses milésimos de segundo passa um monte de coisas pela nossa cabeça. E eu pensei que nem precisava ser boa em física e aplicar uma fórmula de velocidade pra sacar que ia bater. Eu nunca fui boa em cálculo + tinha a resposta exata pra essa conta = ia bater.
E eu lembrei que ainda não recebi a apólice de renovação do seguro. Claro que eu lembrei da Porto Seguro que não me quis (será que ela tinha razão?), e lembrei da minha mãe, da minha família, do dia que eu tive e de todas as coisas que eu planejei pra vida.
Droga, justo agora?
Então eu apertei o volante com força pro carro não rodar e fechei os olhos. Eu pedi ajuda sei lá pra quem. Eu soltei algum som comprido e suspirado do tipo, “aaai”. Eu pensei: fer-rou!
De lá pra cá ainda tento entender.
COMO eu escapei dessa?
Como é que quando eu abri os olhos, o carro dele estava a 1 mm da minha porta direita e o resto era silêncio debaixo do minhocão?
Não me pergunte. Nem me pergunte como é que eu segui dirigindo até em casa depois disso.
Olha, eu já escapei de algumas batidas (e já tomei umas também) nessa minha rotina de paulista. Já vivi aquele “quaaaase”, “ufa”, aquele momento em que um rápido reflexo, uma freada, alguma manobra esperta te livra do B.O. e da franquia da seguradora.
Mas nada que se aproxime de ontem.
Então sabe aquilo que a gente sente quando recebe ajuda de alguém ou algo, sabe-se lá de onde ou como?
Eu derrubei suco de uva no tapete da sala. Chutei o copo. Tenho mania de deixar copo no chão, ao lado do sofá, sabe? Chutei o copo e ele virou. #Vou_tecontar que o suco derramou todo em cima do tapete, por entre o barbante e ainda escorreu todinho pelo chão. O copo estava cheio. O suco era bom.
E de repente eu tinha 10 anos de idade. Olhando aquele suco arroxeado que eu derrubei em cima do tapete da minha mãe. Na sala de casa. Era noite. E a sensação foi exatamente igual. Um choque percorreu o meu corpo quando vi o do líquido roxo sobre o tapete claro. O estrago feito. Será que mancha?
Hoje existe Vanish, o poder O2. Quando eu tinha 10 anos, não.
Eu tinha 10 anos e a culpa não foi minha. Foi ela que me provocou. A irmã mais velha, claro. E ainda fez terror psicológico. Disse que a mancha não sairia nunca mais. Que a mamãe ia ficar muito brava. Que o tapete era de estimação. E que ia dizer que eu fiz de propósito. Foi tanta informação que eu escrevi uma carta. Uma carta pra minha mãe. Pra quando ela chegasse da festa, tarde da noite, soubesse por mim a verdade dos fatos. Lembro que escrevi com lapiseira 0.5, contei que não tive culpa e pedi que me perdoasse.
Tentei ficar acordada pra explicar a carta. Criança redundância. Só que não aguentei. O sono venceu. Mas eu dormi com medo. Não da bronca, mas da decepção da minha mãe pelo meu desastre.
Hoje também foi um desastre. Mas hoje foi tudo culpa minha. Eu sou o desastre do tapete da sala, agora meio roxo, dentro do balde, com sabão em pó e Vanish poder O2.
Eu sou um desastre e de repente parece que os meus copos derramam para além dos tapetes, com gotas que não saem com o poder limpador e deixam marcas por toda parte.
A minha mãe não liga pro tapete da sala, acho que nunca ligou. Ela não brigou, não se decepcionou quando eu tinha 10 anos. E na casa dela hoje nem tem tapete. Mas o meu tapete de barbante foi ela que fez. Esse que tá dentro do balde, ainda meio roxo (acabei de olhar) com sabão em pó e Vanish poder O2 (dei uma chacoalhada pra ver se rola um efeito).
Mãe, a culpa foi minha. Hoje foi.
Eu não tenho lapiseira 0.5, mas tô escrevendo no iPad.
E toda vez que eu chuto um copo ou meu copo transborda, eu tenho insônia. Só quero não me decepcionar com o meu desastre. Como quando eu tinha 10 anos.
Naquele tempo não tinha Vanish poder O2. Mas era tão mais fácil acordar no dia seguinte.
Foto: Vanish Brasil.
PS. Juro que não tem jabá. Mas depois eu conto se a mancha saiu.
Lembro de cada episódio, de cada expectativa seguida de frustração. Porque rejeição a gente não esquece, né?
Pois é. A Porto Seguro não me quer.
Ela me rejeita. Todo ano eu tento, negocio, peço ajuda do corretor, mostro meus predicados e minha CNH limpinha. Mas ela sempre me manda um valor mais de R$ 1 mil acima da concorrência. Tipo um recado: “não feche conosco, não te queremos, aqui você é persona non grata”.
Gente, por quê?
Eu juro que queria entender o motivo de tanto desinteresse na minha pessoa.
Alô, sou moça direita, dona Porto Seguro!
Há pelo menos 5 anos que não registro um sinistro. Eu não bato lata em ninguém. Nem tomo. Sou boa motorista, embora a amiga diga que eu dirijo feito homem. Sou prudente e dou seta – sim, eu dou seta, dona Porto Seguro! Eu não atravesso farol vermelho antes das 23h. Não estou na faixa etária de risco. Tenho garagem em casa e estacionamento no trabalho. Eu pago os impostos em dia. Eu quase não tomo multas, só vez ou outra tenho problema com o velocímetro, coisa besta. Meu carro não é visado e eu rodo pouco.
Eu diria que a minha vida sobre rodas é quase um tédio, não fossem as emoções típicas do trânsito paulistano. Então não aceito esse desdém de seguradora. Poxa, sou boa pagadora!
E ainda sou ex-cliente. Sim, eu já fui desejável. Você me tratava bem, na hone$tidade. Fomos felizes por um longo tempo. Fui fiel e devotada desde meu primeiro carro até 2010. Até que naquele ano roubaram meu carro novo. E o amor acabou. Você me rejeitou por um, dois anos e ad infinitum. No começo o corretor disse que era porque perdi bonificação. Mas que o tempo resolveria a questão. Nada. De lá pra cá eu tento uma reaproximação. Em vão.
Passei por outras duas seguradoras, mas queria você, Porto Seguro. Apesar de que eu nem uso o seguro, mas, sei lá, queria você de volta, só isso. Eu nem dou trabalho, não fico pedindo atenção nem telefono no meio da noite. A única vez que incomodei sua concorrente nos últimos dois anos foi quando a bateria morreu. Veio um moço de moto e trocou. Cobrou caro. Fim.
Assim você me magoa, Porto Seguro.
Como é que um episódio tão antigo, tão infeliz (porque eu também sofri e tomei prejuízo) pode ter marcado tanto nosso relacionamento? A ponto de você nunca mais me querer por perto, resistir às minhas investidas e ignorar minha ficha limpa, minha conduta quase impecável.
Olha que eu sei de muita gente que você atende e dirige alcoolizado por aí, com pontuação estourada e manobra alucinada. Não vou citar nomes, mas depois não reclama da crise e da falta de sorte com a clientela.
Anota aí o meu nome, Porto Seguro. Porque você acaba de me perder.
Tentei por 5 anos. Agora eu que não te quero mais!
Depois de um longo e valoroso home office, volto a almoçar na Vila Olímpia alguns dias da semana.
Logo na primeira sentada no quilo já passa um filminho na cabeça. Tipo um remember com as cenas mais emocionantes dos episódios anteriores, aquela coisa que rola antes de começar uma nova temporada, sabe como é?
Então achei oportuno resgatar três dos ‘melhores momentos’ da Série Vale Refeição.
É uma série independente que não tá na Netflix, só na minha cabeça mesmo. Mas eu #vou_tecontar tudo aqui!
E antes que você credite os meus relatos à inveja PJ do VR alheio, antecipo: eu nem queria mesmo!
Mas acabei de lembrar por que foi que eu comecei a levar marmita pro trabalho.
Pega aí:
QUE MUNDO, AMIGOS!
Almoço na Vila Olímpia. Na mesa ao lado, executivos: um homem e três mulheres. De repente, o papo muda de rumo e o assunto vira o filho de alguém.
O homem:
“Agora o moleque não sabe se quer cinema, artes cênicas, essas coisas aí. Maior besteira. Não tem que fazer faculdade dessas coisas. Se quer fazer coisa de arte, se não tem jeito, que faça cursos variados, fora do Brasil. E, olha, se depender de mim não vai fazer. Depois vira petista frustrado e vai pra rua fazer manifestação. Ou vira jornalista”.
Acelerei a garfada. Pra segurar a boca.
Que mundo, amigos.
Que mundo.
MULHÉ MUDA É BENÇA
Almoço na Vila Olímpia. Fila no caixa. Dois funcionários conversam:
– E todo dia ela pega aquele mesmo ônibus. Sempre quieta, na dela. Quando eu decido finalmente puxar papo, o cobrador me avisa que ela é muda. Pô, cara, acabou com a minha paquera de dois meses!
– Putz, véi. Mas é gata?
– Ah é!
– Então o que tu tá esperando pra aprendê a linguagem de sinal?
– Vc acha?
– Ou tu prefere voltar com a ex que fala pelos cotovelos? Cé besta? Mulhé muda é bença!
(…)
CHARLIE SHEEN DA VILA OLÍMPIA
Almoço na Vila Olímpia. Restaurante novo, assunto velho. Na mesa de trás, três homens na faixa dos 40 e duas mulheres na faixa dos 30.
…
Homem 1 – …daí eu levo pro matadouro, que é o meu apartamento, e pronto. As de 35, 37 que têm filhos querem casar, querem estabilidade.
Homem 2 – Enchem o saco, né?
Homem 1 – Tem que saber levar, cara. Já as outras nessa faixa são as melhores. Mas dão trabalho. Porque são exigentes, cheias de vontade, não aceitam qualquer coisa.
Homem 2 – Aí vai uma energia.
Homem 1 – Teve uma de 26 e outra de 28 que eram mais fáceis. Uma delas era um avião e eu até tentei namorar um tempo. Era boazinha e tal. Meio burrinha, mas não me dava trabalho. Só que não rolou.
Homem 3 – Cara, você é o nosso Charlie Sheen!
Homem 1 – Por isso eu decidi que vou ser um solteirão frustrado mesmo. Investi no carro, no apê bacana, que impressiona a mulherada quando chega lá, cê precisa ver, e sigo no matadouro.
As mulheres da mesa? Riram – alto.
Eu? Tô cogitando trazer marmita pro trabalho. Economizo pras férias e ainda faço uma dieta.
Fica aqui uma possível trilha sonora para acompanhar esse remember. Mas vou deixar solta. Não me peça para enveredar por alguma teoria psicanalítica e explorar o que são essas aspirações do desejo, necessidade e vontade. De comida, bebida e tal.
A cadeira listrada, o protetor 70, o chapéu vermelho, o livro da vez e eu. Tem sol, ventinho, uns 35 graus, o kit férias coletivas e um sonho: o silêncio.
Por “kit férias coletivas” entende-se: gritos de olha o camarão e cerveja geladinha, pagode à esquerda e samba à direita (mas também pode ser o contrário), o homem-aranha do algodão doce, crianças, seus baldinhos, choros e chiliques. Um salva-vidas blasé mirando o além-mar, comidas pulando pra fora de isopores – com dimensões e indulgências variadas.
E é bom eu parar de listar, senão já pego o meu livrinho e saio de fininho.
As conversas paralelas no entorno atravessam a narração do anti-herói do meu livro. Ele está em Madri, eu em Santos. Ainda que exista todo um oceano entre nós, as palavras começam a se misturar e tenho que voltar um ou dois parágrafos uma ou duas vezes. Procuro o fone de ouvido, mas percebo que esqueci.
“Olha, vou te dizer, se meu filho tiver metade – digo metade, nem precisa ser 50% – da inteligência da minha mulher, se ele tiver metade eu já tô feliz. Não que eu seja um cara burro. Não. Mas eu sou preguiçoso e tal. Agora a feição vai ser minha. Porque eu sou um cara bonito”.
Não, não é do livro. Claro. E depois disso eu tive que virar pra dar uma espiada. Claro.
A mulher, grávida, tentava insistentemente fazer um buraco na areia pro guarda-sol. O homem, sentado na cadeira, cerveja na mão, conversava com a colega, de boa na lagoa.
Pobre criança.
Porque 2016 será fruto de 2015.
Né?
Pois é.
Cena final: guarda-sol sai voando e atropelando as crianças ao lado. Aquelas que provavelmente são frutos de 2011, 2012, 2013 e 2014. . . . E viva o verão.
Não, eu não tô de férias. Não tá tendo férias em 2015. =( Mas em 2014 teve. E eu resgatei um textinho do meu primeiro dia de férias. Porque achei que seria interessante comparar alguns pensamentos de fim ano, tipo um FlaXFlu de 2014X2015. Na esperança de que eu possa concluir que essa sensação de que 2015 se arrasta e insiste em fazer estragos seja apenas fruto do esgotamento físico e mental que humanamente nos acomete nesses tempos.
Então vamos lá. Eu #vou_tecontar como foi em 2014:
“O primeiro dia do resto das minhas férias. Acordo com calma, faço uma hora de preguicinha na cama, coloco uma música, escancaro as janelas para o sol entrar e preparo um café sossegado. Uma chuveirada e, pluft, é meio dia. Lindo! Como a vida deve ser. Sem trânsito, sem más notícias, sem telefone tocando, sem e-mails na caixa de entrada. Saio para resolver as últimas burocracias de 2014. Eba. Daí chove. E eu tô sem guarda-chuva. Ahhhh, mas tá valendo, eu tô de férias! Vale tomar chuva, vale andar por aí molhada, descabelada. Daí eu lembro das janelas. E eu tô longe de casa. Ahhhh, mas tá valendo, eu tô de férias! Vale um chão molhado, vale passar um paninho e fica tudo certo. Daí rola uma ventania e a rua começa a alagar. E eu tô sem galochas – eu não tenho galochas. Ahhhh, mas tá valendo, eu tô de férias e a Cantareira tá precisando muito dessa água! Daí, em razão das condições meteorológicas adversas, decido interromper as atividades temporariamente e voltar pra casa. Só falta sacar o dinheiro e… é quando o caixa eletrônico bloqueia a minha senha. Ele alega que eu errei três vezes, sabe como é? Cara de pau porque eu digitei a senha corretamente, juro que aqueles números são a minha senha. Só que com caixa eletrônico não tem conversa e sou obrigada a pegar fila para registrar uma nova senha. E eu saio do banco driblando sacos de lixo navegantes e afundando minha sandália preferida naquela água marrom que toma conta da calçada. Mas tá tudo sob controle. Eu tenho uma nova senha. E eu tô de férias. Daí, eu chego no prédio e não tem luz. Ok, hora do exercício. E eu subo oito andares de escada, escorrendo, e vejo a cara do faxineiro que acabou de passar pano nos corredores. Sorrio sem graça e me desculpo três vezes. Eu tô de férias, repito. Daí eu chego no apartamento e tem uma multa me esperando na porta. E eu decido não pensar nisso até janeiro. Afinal, eu tô de férias. Daí eu entro e começo a vistoria: Cozinha – da fruteira ao liquidificador, tudo aguado. Lavanderia – vou ter que lavar de novo tudo o que tá no varal. Mas a árvore da felicidade e as orquídeas passam bem. Sala – armário, mesa, cadeiras e sofá comprometidos. Papeis espalhados pela casa, pastosos, indecifráveis e assinados pelo efeito-ventania. Quarto Liberdade – há um lago bem na frente da janela. O tapete chora lágrimas de chuva. Quarto Paraíso (o meu) – ainda vou descobrir se a TV tem salvação. E, sabe, perto da janela tem tb um colchão novinho, que levou boa parte daquele décimo terceiro que eu não recebo. Pois é.
Agora tô aqui, de férias, torcendo pano e esperando a luz voltar para ligar o secador.
2014, você não tá valendo mais nada. Vê se bate a porta quando sair.”
Conclusão: o texto é de 2014, mas poderia muito bem ser de 2015.
Só que com alguns plus “a mais”. Porque não tá tendo “ahhhh, eu tô de férias” pra se apegar. Tá tendo aedes egypti no ar e inflação no mercado. O cartão do banco passa bem, já o saldo não tá bem, não. Não daria pra comprar nem travesseiro, quanto mais colchão. E agora lembrei que meu passaporte vai vencer. Não que eu pretenda usar. Mas vou guardar pra olhar os carimbos de vez em quando (cada um tem seu santo de devoção, né?).
Estava eu fazendo meu suco verde. Que na verdade não era verde porque acabou a couve. Mas tinha pepino, maçã, beterraba, cenoura e laranja. Então era mais um suco vermelho. Estava eu fazendo o meu suco vermelho, quando abri o armário pra pegar um copo. A porta da esquerda capengou, a dobradiça do alto se soltou. Dei um jeito de apoiar a porta da esquerda na da direita – acreditei que esquerda e direita poderiam se equilibrar, que ingênua – e peguei o copo. Escolhi o copo verde pra ajudar na intenção do suco. Botei o suco no copo. E pensei em providenciar eu mesma o conserto da porta. Se eu já troquei uma válvula hydra poderia muito bem consertar a porta do armário. Porque depois que eu troquei a válvula hydra me empoderei e acho que sou capaz de tudo. Daí eu bebi o copão verde de suco vermelho. Tava bom, tava gelado, almoço de verão. Daí já lavei o juicer e lavei o copão. Abri o armário pra guardar o cop…
Foi aí.
Foi nesse instante que 2015 desabou.
A porta esquerda do armário soltou, mas dessa vez soltou a folha inteira de uma vez. Mais ou menos na altura da minha cabeça, a porta branca do armário da cozinha decidiu se jogar. Cansou da vida, cansou de 2015, au revoir. E ela se jogou de um jeito difícil de explicar, ela estava cheia de vontade, sabe? E pra cima de mim. Aquela coisa branca e dura com mais ou menos um metro de altura e uns 45 cm de largura, eu não medi, mas acho que é isso. Ela se desprendeu da sua base e se lançou ao ar. Mas não veio sozinha. Porque ela meio que se contorceu no voo e puxou algumas coisas que estavam dentro do armário. Parecia decidida a não terminar em vão esse 2015. Eu ia segurá-la, mas (eita, Giovana!) o estrebuchamento foi tanto que não consegui. E minha atenção se voltou pra comissão de fundo. E enquanto a porta suicida se debatia em meu braço direito e depois enchia a quina no ossinho esquerdo do meu quadril – e esse doeu, doeu à la 2015 – logo veio a caneca. Era minha caneca preferida. A caneca dos cachorrinhos. Aquela que eu gosto(ava) pra tomar chá de hortelã. Eu vi a caneca e enquanto puxava meu pé esquerdo pra porta em queda livre não me aleijar na saída, os cachorrinhos rodavam no ar em direção ao chão. Um giro completo e eu vi, em câmera lenta – parecia lenta, juro, parecia filme -, eu vi ela se aproximar do chão de asinha pra baixo e previ o estrago.
Eu desejei um controle remoto, eu queria voltar a caneca na prateleira, a porta no lugar, eu não queria aquilo que ia acontecer no chão da cozinha, eu não queria perder os cachorrinhos, eu não queria esse monte de coisa chata e triste que aconteceu em 2015, eu não queria, poxa!
Mas em menos de dois segundos, acho que em menos de um segundo, talvez até menos de meio segundo, eu não sei – a gente não consegue mensurar o ano tempo nessas horas, só sei que foi depressa demais, depressa a ponto de eu não conseguir evitar -, a caneca, o 2015, a coisa toda se espatifou no chão.
Alguns segundos de silêncio e eu fiquei tentando dimensionar o estrago.
Em mim, no chão, no armário, em 2015.
A porta caída à esquerda, um prato quebrado aos meus pés e não havia mais cachorrinhos pra hortelã. O que foi uma caneca de 2015 já havia se espatifado em muitos e muitos pequenos pedaços. Tantos que não foi possível nem usar vassoura. Precisei de aspirador pra tirar os resíduos e o pó de caneca que se espalharam pela cozinha até alcançar a sala.
Mas eu limpei. E bem limpinho, sabe? Porque dos estilhaços de 2015 eu não quero levar nada. Nem poeira.
Eu tô cansada hoje. E quando eu tô assim muito cansada não consigo dormir. Então decidi escrever. Pra ver se me distraio do cansaço, se engano (ele) um pouco e o sono vem. Logo mais eu te conto se funcionou. Enquanto isso eu preciso de um tema. Mas eu tô tão cansada que fica difícil pensar num tema. Outro dia mesmo eu tinha um tema, mas esqueci. Eu tinha mais de um, na verdade, tinha uns três temas na fila pra escrever. Porque eu faço uma fila de temas. Mas não é por ordem de tamanho, data ou importância, é por ordem de alguma coisa que eu não sei bem explicar. Talvez ordem de urgência mental, por assim dizer. Urgência pra parar de pensar no tema, descansar e, então, dormir. E tem tema que enquanto eu não escrevo ele não me deixa dormir. Com você também é assim? Mas nem sempre o tema é um tema propriamente dito. Porque o tema deriva das banalices, quotidianezas, amenitudes. Alguma coisa que acontece na rua, na chuva, na fazenda e daí traz consigo um tema. Essa parte da rua, da chuva, da fazenda apareceu assim do nada e eu não sei explicar de onde veio. Possivelmente do meu inconsciente que um dia, lá atrás, registrou um arquivo do show do Kid Abelha. Mas eu não vou entrar no mérito da casinha de sapê porque eu não sou frequentadora. Casinha de sapê até poderia ser um tema, acontece que eu realmente não tenho um fato relacionado que me traga uma insônia, uma urgência, um texto. Então eu vou deixar a casinha pra lá e mudar de assunto assim, do nada. Porque embora eu tenha aprendido na aula de redação da escola que um texto tem que ter introdução, desenvolvimento e conclusão, com as ideias bem encadeadas, quando eu tô assim muito cansada eu nem sempre mantenho um pensamento linear. Na verdade, independente da casinha ser de sapê, de tijolo ou de lata, eu não costumo ter um pensamento linear. Nem mesmo quando eu não estou cansada e quando estou com sono em dia. E quando eu sonho, eu sonho bagunçado também. Com você também é assim? Pois eu raramente lembro de um sonho. Às vezes lembro de pesadelo. Mas é sempre coisa caótica, com um pé nonsense e outro manco. Mudam os personagens, o enredo, o tempo-espaço. Assim, do nada. Feito sapê que vira lata. Eu quis dizer um sapê que se transforma em lata e não em cachorro ou gato vira-lata, deu pra entender essa parte? Tem frase que engana, né? Mas eu gosto. Eu gosto de deixar a interpretação em aberto e a pessoa entende o que quiser (e aqui eu lembrei de um tema da lista pra usar outro dia). A pessoa também pode ir e voltar no texto, assim, do nada. Agora, por exemplo, você pode voltar na primeira menção à casinha de sapê. Depois você pode pular pra primeira frase e você vai reler que eu tô cansada hoje. E talvez você, então, tenha um nível de tolerância maior com a minha falta de tema e o meu pensamento não-linear. Talvez você não siga pra reta final deste texto, cogitando que está perdendo o seu tempo e que este deve ser o pior texto que eu já escrevi. Talvez sim, talvez seja. Porque hoje eu estou cansada. E talvez você, então, me perdoe por isso. Porque, juro, tudo o que eu queria agora é que essa droga de música saísse da minha cabeça! Com você também é assim? Ela chega do nada, gruda e não te larga mais? O fenômeno acontece principalmente quando estou muito cansada e geralmente com repertório duvidoso. Porque se eu pudesse escolher, queria que grudasse, sei lá, uma melodia do Miles. Porque até ajudaria a relaxar e embalar meu sono. Mas me vem a porra da casinha de sapê. Quando não vem coisa pior. É feito pesadelo nonsense manco. Tipo um texto sem tema e não-linear. Ou um cansaço que não te deixa dormir. Como você também é assim? Olha, acho que agora tô me sentindo um pouco melhor, tô tomando chá de hortelã e acho que seu deitar a cabeça no travesseiro pode até ser que eu consiga dormir. Por isso não vou nem revisar o texto e espero que você releve qualquer erro-fruto do meu cansaço. Mas, ei, se você ainda estiver por aí, posso pedir só mais uma coisa? Canta uma musiquinha pra eu dormir? Só não vale aquela, combinado?
Ah, #vou_tecontar que eu não vou colocar aquela música como trilha do texto. E não faço isso só por mim, não. Mas pra evitar que ela grude em você também.
Padaria em Pinheiros, São Paulo. A TV ligada fala sobre Estado Islâmico, ataques terroristas, homens bomba, recrutamento de jovens.
Na mesa ao lado, uma família:
– Pai, por que é que eles explodem e matam as pessoas? – Porque eles são inimigos e são muito malvados, filho. – E os pais deles não colocam eles de castigo? – É que eles vivem muito longe do pai e da mãe. – E se a gente arranjar uma família pra eles? – Acho que eles não querem fazer as pazes. É por isso que a polícia está atrás deles, entendeu? – E se a gente emprestar o videogame pra eles? Eles podem explodir e lutar sem machucar ninguém, né?
…