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O kit férias coletivas e a pobre criança que vem aí

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Litoral de São Paulo, 26 de dezembro de 2015.

A cadeira listrada, o protetor 70, o chapéu vermelho, o livro da vez e eu. Tem sol, ventinho, uns 35 graus, o kit férias coletivas e um sonho: o silêncio.

Por “kit férias coletivas” entende-se: gritos de olha o camarão e cerveja geladinha, pagode à esquerda e samba à direita (mas também pode ser o contrário), o homem-aranha do algodão doce, crianças, seus baldinhos, choros e chiliques. Um salva-vidas blasé mirando o além-mar, comidas pulando pra fora de isopores – com dimensões e indulgências variadas.

E é bom eu parar de listar, senão já pego o meu livrinho e saio de fininho.

As conversas paralelas no entorno atravessam a narração do anti-herói do meu livro. Ele está em Madri, eu em Santos. Ainda que exista todo um oceano entre nós, as palavras começam a se misturar e tenho que voltar um ou dois parágrafos uma ou duas vezes. Procuro o fone de ouvido, mas percebo que esqueci.

“Olha, vou te dizer, se meu filho tiver metade – digo metade, nem precisa ser 50% – da inteligência da minha mulher, se ele tiver metade eu já tô feliz. Não que eu seja um cara burro. Não. Mas eu sou preguiçoso e tal. Agora a feição vai ser minha. Porque eu sou um cara bonito”.

Não, não é do livro. Claro.
E depois disso eu tive que virar pra dar uma espiada. Claro.

A mulher, grávida, tentava insistentemente fazer um buraco na areia pro guarda-sol. O homem, sentado na cadeira, cerveja na mão, conversava com a colega, de boa na lagoa.

Pobre criança.

Porque 2016 será fruto de 2015.

Né?

Pois é.

Cena final: guarda-sol sai voando e atropelando as crianças ao lado. Aquelas que provavelmente são frutos de 2011, 2012, 2013 e 2014.
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E viva o verão.

O primeiro dia do resto das minhas férias – só que não

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Não, eu não tô de férias. Não tá tendo férias em 2015. =(
Mas em 2014 teve.
E eu resgatei um textinho do meu primeiro dia de férias.
Porque achei que seria interessante comparar alguns pensamentos de fim ano, tipo um FlaXFlu de 2014X2015. Na esperança de que eu possa concluir que essa sensação de que 2015 se arrasta e insiste em fazer estragos seja apenas fruto do esgotamento físico e mental que humanamente nos acomete nesses tempos.

Então vamos lá.
Eu #vou_tecontar como foi em 2014:

“O primeiro dia do resto das minhas férias.
Acordo com calma, faço uma hora de preguicinha na cama, coloco uma música, escancaro as janelas para o sol entrar e preparo um café sossegado. Uma chuveirada e, pluft, é meio dia.
Lindo! Como a vida deve ser. Sem trânsito, sem más notícias, sem telefone tocando, sem e-mails na caixa de entrada.
Saio para resolver as últimas burocracias de 2014. Eba.
Daí chove.
E eu tô sem guarda-chuva.
Ahhhh, mas tá valendo, eu tô de férias! Vale tomar chuva, vale andar por aí molhada, descabelada.
Daí eu lembro das janelas.
E eu tô longe de casa.
Ahhhh, mas tá valendo, eu tô de férias! Vale um chão molhado, vale passar um paninho e fica tudo certo.
Daí rola uma ventania e a rua começa a alagar.
E eu tô sem galochas – eu não tenho galochas.
Ahhhh, mas tá valendo, eu tô de férias e a Cantareira tá precisando muito dessa água!
Daí, em razão das condições meteorológicas adversas, decido interromper as atividades temporariamente e voltar pra casa.
Só falta sacar o dinheiro e… é quando o caixa eletrônico bloqueia a minha senha. Ele alega que eu errei três vezes, sabe como é? Cara de pau porque eu digitei a senha corretamente, juro que aqueles números são a minha senha. Só que com caixa eletrônico não tem conversa e sou obrigada a pegar fila para registrar uma nova senha.
E eu saio do banco driblando sacos de lixo navegantes e afundando minha sandália preferida naquela água marrom que toma conta da calçada.
Mas tá tudo sob controle. Eu tenho uma nova senha. E eu tô de férias.
Daí, eu chego no prédio e não tem luz.
Ok, hora do exercício.
E eu subo oito andares de escada, escorrendo, e vejo a cara do faxineiro que acabou de passar pano nos corredores. Sorrio sem graça e me desculpo três vezes. Eu tô de férias, repito.
Daí eu chego no apartamento e tem uma multa me esperando na porta.
E eu decido não pensar nisso até janeiro. Afinal, eu tô de férias.
Daí eu entro e começo a vistoria:
Cozinha – da fruteira ao liquidificador, tudo aguado.
Lavanderia – vou ter que lavar de novo tudo o que tá no varal. Mas a árvore da felicidade e as orquídeas passam bem.
Sala – armário, mesa, cadeiras e sofá comprometidos. Papeis espalhados pela casa, pastosos, indecifráveis e assinados pelo efeito-ventania.
Quarto Liberdade – há um lago bem na frente da janela. O tapete chora lágrimas de chuva.
Quarto Paraíso (o meu) – ainda vou descobrir se a TV tem salvação. E, sabe, perto da janela tem tb um colchão novinho, que levou boa parte daquele décimo terceiro que eu não recebo. Pois é.

Agora tô aqui, de férias, torcendo pano e esperando a luz voltar para ligar o secador.

2014, você não tá valendo mais nada.
Vê se bate a porta quando sair.”

Conclusão: o texto é de 2014, mas poderia muito bem ser de 2015.
Só que com alguns plus “a mais”. Porque não tá tendo “ahhhh, eu tô de férias” pra se apegar. Tá tendo aedes egypti no ar e inflação no mercado. O cartão do banco passa bem, já o saldo não tá bem, não. Não daria pra comprar nem travesseiro, quanto mais colchão. E agora lembrei que meu passaporte vai vencer. Não que eu pretenda usar. Mas vou guardar pra olhar os carimbos de vez em quando (cada um tem seu santo de devoção, né?).
 
É isso:
2015, você não tá valendo mais nada.
Vê se bate a porta quando sair.
 
PS. E não volte na versão S ou PLUS. 
 

Eu vi 2015 se espatifar na minha frente

2015, a caneca, eu e o chá de hortelã.
2015, a caneca, o chá de hortelã e eu.
 
 
Eu acabei de ver 2015 se espatifar na minha frente.
Sim, eu acho que sim.
Eu acho que foi ele e #vou_tecontar como foi.

Estava eu fazendo meu suco verde. Que na verdade não era verde porque acabou a couve. Mas tinha pepino, maçã, beterraba, cenoura e laranja. Então era mais um suco vermelho.
Estava eu fazendo o meu suco vermelho, quando abri o armário pra pegar um copo. A porta da esquerda capengou, a dobradiça do alto se soltou. Dei um jeito de apoiar a porta da esquerda na da direita – acreditei que esquerda e direita poderiam se equilibrar, que ingênua – e peguei o copo. Escolhi o copo verde pra ajudar na intenção do suco. Botei o suco no copo. E pensei em providenciar eu mesma o conserto da porta. Se eu já troquei uma válvula hydra poderia muito bem consertar a porta do armário. Porque depois que eu troquei a válvula hydra me empoderei e acho que sou capaz de tudo. Daí eu bebi o copão verde de suco vermelho. Tava bom, tava gelado, almoço de verão. Daí já lavei o juicer e lavei o copão. Abri o armário pra guardar o cop…

Foi aí.
Foi nesse instante que 2015 desabou.

A porta esquerda do armário soltou, mas dessa vez soltou a folha inteira de uma vez. Mais ou menos na altura da minha cabeça, a porta branca do armário da cozinha decidiu se jogar. Cansou da vida, cansou de 2015, au revoir. E ela se jogou de um jeito difícil de explicar, ela estava cheia de vontade, sabe? E pra cima de mim. Aquela coisa branca e dura com mais ou menos um metro de altura e uns 45 cm de largura, eu não medi, mas acho que é isso. Ela se desprendeu da sua base e se lançou ao ar. Mas não veio sozinha. Porque ela meio que se contorceu no voo e puxou algumas coisas que estavam dentro do armário. Parecia decidida a não terminar em vão esse 2015. Eu ia segurá-la, mas (eita, Giovana!) o estrebuchamento foi tanto que não consegui. E minha atenção se voltou pra comissão de fundo. E enquanto a porta suicida se debatia em meu braço direito e depois enchia a quina no ossinho esquerdo do meu quadril – e esse doeu, doeu à la 2015 – logo veio a caneca. Era minha caneca preferida. A caneca dos cachorrinhos. Aquela que eu gosto(ava) pra tomar chá de hortelã. Eu vi a caneca e enquanto puxava meu pé esquerdo pra porta em queda livre não me aleijar na saída, os cachorrinhos rodavam no ar em direção ao chão. Um giro completo e eu vi, em câmera lenta – parecia lenta, juro, parecia filme -, eu vi ela se aproximar do chão de asinha pra baixo e previ o estrago.

Eu desejei um controle remoto, eu queria voltar a caneca na prateleira, a porta no lugar, eu não queria aquilo que ia acontecer no chão da cozinha, eu não queria perder os cachorrinhos, eu não queria esse monte de coisa chata e triste que aconteceu em 2015, eu não queria, poxa!

Mas em menos de dois segundos, acho que em menos de um segundo, talvez até menos de meio segundo, eu não sei – a gente não consegue mensurar o ano tempo nessas horas, só sei que foi depressa demais, depressa a ponto de eu não conseguir evitar -, a caneca, o 2015, a coisa toda se espatifou no chão.

Alguns segundos de silêncio e eu fiquei tentando dimensionar o estrago.

Em mim, no chão, no armário, em 2015. 
A porta caída à esquerda, um prato quebrado aos meus pés e não havia mais cachorrinhos pra hortelã. O que foi uma caneca de 2015 já havia se espatifado em muitos e muitos pequenos pedaços. Tantos que não foi possível nem usar vassoura. Precisei de aspirador pra tirar os resíduos e o pó de caneca que se espalharam pela cozinha até alcançar a sala.

Mas eu limpei.
E bem limpinho, sabe?
Porque dos estilhaços de 2015 eu não quero levar nada.
Nem poeira.


Foto: arquivo pessoal.  

 

Com você também é assim?

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Eu tô cansada hoje. E quando eu tô assim muito cansada não consigo dormir. Então decidi escrever. Pra ver se me distraio do cansaço, se engano (ele) um pouco e o sono vem. Logo mais eu te conto se funcionou. Enquanto isso eu preciso de um tema. Mas eu tô tão cansada que fica difícil pensar num tema. Outro dia mesmo eu tinha um tema, mas esqueci. Eu tinha mais de um, na verdade, tinha uns três temas na fila pra escrever. Porque eu faço uma fila de temas. Mas não é por ordem de tamanho, data ou importância, é por ordem de alguma coisa que eu não sei bem explicar. Talvez ordem de urgência mental, por assim dizer. Urgência pra parar de pensar no tema, descansar e, então, dormir. E tem tema que enquanto eu não escrevo ele não me deixa dormir. Com você também é assim? Mas nem sempre o tema é um tema propriamente dito. Porque o tema deriva das banalices, quotidianezas, amenitudes. Alguma coisa que acontece na rua, na chuva, na fazenda e daí traz consigo um tema. Essa parte da rua, da chuva, da fazenda apareceu assim do nada e eu não sei explicar de onde veio. Possivelmente do meu inconsciente que um dia, lá atrás, registrou um arquivo do show do Kid Abelha. Mas eu não vou entrar no mérito da casinha de sapê porque eu não sou frequentadora. Casinha de sapê até poderia ser um tema, acontece que eu realmente não tenho um fato relacionado que me traga uma insônia, uma urgência, um texto. Então eu vou deixar a casinha pra lá e mudar de assunto assim, do nada. Porque embora eu tenha aprendido na aula de redação da escola que um texto tem que ter introdução, desenvolvimento e conclusão, com as ideias bem encadeadas, quando eu tô assim muito cansada eu nem sempre mantenho um pensamento linear. Na verdade, independente da casinha ser de sapê, de tijolo ou de lata, eu não costumo ter um pensamento linear. Nem mesmo quando eu não estou cansada e quando estou com sono em dia. E quando eu sonho, eu sonho bagunçado também. Com você também é assim? Pois eu raramente lembro de um sonho. Às vezes lembro de pesadelo. Mas é sempre coisa caótica, com um pé nonsense e outro manco. Mudam os personagens, o enredo, o tempo-espaço. Assim, do nada. Feito sapê que vira lata. Eu quis dizer um sapê que se transforma em lata e não em cachorro ou gato vira-lata, deu pra entender essa parte? Tem frase que engana, né? Mas eu gosto. Eu gosto de deixar a interpretação em aberto e a pessoa entende o que quiser (e aqui eu lembrei de um tema da lista pra usar outro dia). A pessoa também pode ir e voltar no texto, assim, do nada. Agora, por exemplo, você pode voltar na primeira menção à casinha de sapê. Depois você pode pular pra primeira frase e você vai reler que eu tô cansada hoje. E talvez você, então, tenha um nível de tolerância maior com a minha falta de tema e o meu pensamento não-linear. Talvez você não siga pra reta final deste texto, cogitando que está perdendo o seu tempo e que este deve ser o pior texto que eu já escrevi. Talvez sim, talvez seja. Porque hoje eu estou cansada. E talvez você, então, me perdoe por isso. Porque, juro, tudo o que eu queria agora é que essa droga de música saísse da minha cabeça! Com você também é assim? Ela chega do nada, gruda e não te larga mais? O fenômeno acontece principalmente quando estou muito cansada e geralmente com repertório duvidoso. Porque se eu pudesse escolher, queria que grudasse, sei lá, uma melodia do Miles. Porque até ajudaria a relaxar e embalar meu sono. Mas me vem a porra da casinha de sapê. Quando não vem coisa pior. É feito pesadelo nonsense manco. Tipo um texto sem tema e não-linear. Ou um cansaço que não te deixa dormir. Como você também é assim? Olha, acho que agora tô me sentindo um pouco melhor, tô tomando chá de hortelã e acho que seu deitar a cabeça no travesseiro pode até ser que eu consiga dormir. Por isso não vou nem revisar o texto e espero que você releve qualquer erro-fruto do meu cansaço. Mas, ei, se você ainda estiver por aí, posso pedir só mais uma coisa? Canta uma musiquinha pra eu dormir? Só não vale aquela, combinado?

Ah, #vou_tecontar que eu não vou colocar aquela música como trilha do texto. E não faço isso só por mim, não. Mas pra evitar que ela grude em você também.

De nada.


Foto: youtube.com.

 

O terrorismo sob o olhar de uma criança

Padaria em Pinheiros, São Paulo. A TV ligada fala sobre Estado Islâmico, ataques terroristas, homens bomba, recrutamento de jovens.

Na mesa ao lado, uma família:

– Pai, por que é que eles explodem e matam as pessoas?
– Porque eles são inimigos e são muito malvados, filho.
– E os pais deles não colocam eles de castigo?
– É que eles vivem muito longe do pai e da mãe.
– E se a gente arranjar uma família pra eles?
– Acho que eles não querem fazer as pazes. É por isso que a polícia está atrás deles, entendeu?
– E se a gente emprestar o videogame pra eles? Eles podem explodir e lutar sem machucar ninguém, né?

 

<3

 

É.

meu aniversário é na semana que vem

A persistência da memória, Salvador Dalí
a persistência da memória, Salvador Dalí

meu aniversário é na semana que vem. legal, vai acabar o inferno astral. tá, eu gosto de receber o carinho das pessoas. sim, eu aceito presentes. não, eu não gosto da passagem do tempo. ou melhor, eu não gosto de ver o tempo encurtando na frente e esticando pra trás. ou seja, eu não queria fazer aniversário. verdade, eu só queria uma outra dose de tempo. sabe, não é pelo colágeno que escorre pela mão. é que eu plantei a árvore, mas não fiz o resto da lição. não conheço uns continentes. nem experimentei o suficiente. tenho histórias me esperando. alguns projetos pra executar. e um rumo para encontrar. juro, eu não quero chegar antes, só aproveitar mais o caminho. até tenho algumas metas, mas sou o pior chefe que eu podia ter. daí o presente que eu queria mesmo ninguém pode me dar. tipo uns anos de brinde. então vou aceitar o calendário e brindar a passagem do tempo. porque não há nada que eu possa fazer. é bom mas é uma droga. entende? se vc não entende, sorte a sua. do contrário, que bom e que droga que vc me entende.

 


Foto: obviousmag.org.

 

Morrer é sacanagem!

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Pessoas morrem.

Óbvio.

Acontece todo dia. Toda hora.

Mas quando acontece ao lado, bem próximo ou quando esbarra na nossa vida, assusta.

Pra caramba.

Porque cai aquela ficha da fragilidade da existência. Um elefante (dois elefantes, três elefantes, dez elefantes…) reaparece dentro da nossa cabeça e faz estrago pra lembrar que a vida se vai feito balão no vento. A vida dele, a minha, a sua. Ela vai. Esvai. Pluft. Um dia acordou e não tem mais.

E dias assim são diferentes de quando a gente vê na televisão (fulano morreu), escuta dizer (fulano morreu), lê (fulano morreu) ou simplesmente sabe que tá por aí (fulanos morrem).

Se quem morre é da família ou muito próximo, a gente meio que vai junto. A pessoa leva um pedaço nosso e a gente segue esburacado. O impacto é tão forte que a morte até muda a vida.

Se quem morre é colega ou conhecido, a gente entristece, pensa na família, se põe no lugar, adota discurso clichê, tudo pra tentar lidar com a indigestão da realidade.

Mas a morte nunca desce bem no nosso mapa mental, do lado esquerdo de Greenwich.

Se quem morre é velhinho a gente sofre pela porcaria da finitude.

Se quem morre é jovem, a gente sofre porque tinha a vida toda pela frente.

Se quem morre tava doente, a gente sofre porque foi morte sofrida.

Se quem morre tava saudável, a gente sofre porque foi morte imprevista.

Se quem morre vai de acidente, a gente sofre porque foi morte banal.

Se quem morre vai lentamente, a gente sofre porque foi morte dolorosa.

Não me venham com argumentos de “lei natural”, “os bons morrem antes”, “estava escrito”, “descansou” (esse é dos piores).

Morrer é sacanagem! – com exclamação.

A morte não causa só tristeza e saudade. A morte causa crise existencial em quem fica. Traz de volta aquelas perguntinhas que a gente não sabe responder direito e deixa por último nas provas da vida, tipo “o que é que eu tô fazendo aqui mesmo?”. Mas a gente faz esquema de vestibular. Não sabe, pula, vai pra próxima e diz que volta depois pra não perder tempo. Né? Muitas vezes não dá tempo. Daí a gente acaba “chutando” no final ou deixa em branco. E quando a gente vê, já foi.

Mas na vida alguns vão e ficam. Tô falando de gente que já morreu mas a gente trata como se ainda estivesse andando por aí.

Dá quase pra ver a figura tomando um café, comendo uma pizza, trocando ideia, escutando música.

Tipo Freud.

Freud tá em todas. Quase todo mundo conhece o cara. Ele tá nas mesas de bar, ele tá nas empresas, ele tá nas casas de família. É onipresente.

Freud não morreu. Tá, eu não vou citar o Elvis aqui (não sei quem eu citaria na música). Mas cito, sei lá, Lewis Carroll, Leminski, Aristóteles que vem depois de Platão, cito até o padre do balão. O Aristóteles tomando uma gelada com o padre, imagina?

Na internet, Clarice, Osho, Buda, CFA e até o Bial se misturam em atribuições. Até enchem o saco. Já não se sabe qual é a Lispector qual é a Falcão. Tudo meio morto-vivo. Tipo CPMF. E antes que me corrijam eu sei que o Bial tá vivo.

E eu poderia passar horas citando nomes e mais nomes que formam um exército do que eu poderia nomear de “existências perenes”. E não tô falando de espírito. Deixo a crença de cada um com cada um. Tô falando daquilo que fica. Da vida. Pra cada um.

Meu pai é um clássico pra mim. Morreu, mas tá por aí. Tipo Peter Parker, porque o heroi continua.

Sabe, de vez em quando me pergunto se a coisa aqui não é meio Caverna do Dragão.

A gente já morreu e nem sabe.

.

O que eu quero dizer com estas linhas?

Não sei.

Se eu soubesse não escrevia aqui.

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Mas acho que preciso voltar naquelas perguntas.

As que deixei em branco.


Gif: me encaminharam e desconheço a fonte, mas parece ser marquinhoosmark.

Dois “Pai Nosso” e três “Ave Maria”

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Missa de primeira comunhão, década de 80.

Enquanto eu #vou_tecontar, sugiro que você coloque essa trilha aqui:

Ela estava longe dali. As palavras do padre não colavam naquela menina que foi ao catecismo para agradar a mãe.

Até gostava da capelinha, era simples, tranquila e cheia de plantas. A professora se chamava Tia Márcia e tinha cabelos bem armados, até parecia a Claudia Raia (Tancinha) na novela. Ela não era chata, mas também não era legal. E não sabia responder algumas perguntas dos alunos.

Uma vez a Tia Márcia expulsou um menino porque ele falou palavra feia na aula. Foi um escândalo. Quem não escutou ficou sabendo.

“Nossa, ele disse palavrão dentro da capela, a casa de Deus!”  

Deu pena porque, afinal de contas, se Deus era bom como a Tia Márcia dizia, por que ele não perdoaria o palavrão do menino? Mas a professora não perdoou. Ela ficou mais brava que Deus!

Entre cópias de trechos do Testamento no caderno capa dura e desenhos com passagens da Bíblia, ela gostava mesmo era dos intervalos porque subia nas árvores.

Durante as aulas, achava muito estranho porque não conseguia sentir o coração aquecido e a presença de Jesus ali, como a professora dizia e os coleguinhas assentiam. Se concentrava esperando alguma sensação física e… nada acontecia. Mas isso ela não contava pra ninguém porque, afinal, não queria ser a única criança que não tinha Jesus no coração!

No dia da foto também não sentia nada novo, o coração estava normal.

E mal escutava o que dizia o padre bem velhinho.

Ficou um tempão reparando nas pessoas. Percebeu que seu vestido estava com a barra curta demais em relação às outras meninas (dava pra ver a canela) e a coroa posicionada errada, tipo camponesa e não princesa, como as amiguinhas. Sem falar no cabelo que não assentava direito, ainda que tivesse escovado bastante. Só anos depois aprendeu que cabelos finos e ondulados como os dela devem passar longe da escova quando secos – se quiser evitar parentesco com Gal Costa.

Voltando pra missa, foi a primeira e provavelmente única vez que experimentou a hóstia. Fez o que mandaram naquele ritual, confessou pro padre (que parecia não ouvir nada) que pecou: brigou com a irmã que a provocou e estudou menos do que devia para tirar dez na escola.

Dois “Pai Nosso” e três “Ave Maria”, e ainda bem que ele não pediu “Salve Rainha” porque essa ela nunca soube de cor.

Amém.


Foto: arquivo pessoal.

 

Cucaracha’s revenge – a saga continua

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Eu já estava quase encerrando o expediente noturno, fechando arquivos, pensando na minha cama, quando vi a barata invasora.

Desta vez ela não entrou voando, mas despencou pela janela e caiu de costas (provavelmente um exemplar de categoria inferior no quesito voo livre).

Esperneou enquanto eu rapidamente executei os movimentos de guerra: chinelos, spray SBP, telefone e posição de ataque.

Logo a dita se recuperou do tombo e começou a caminhar pela sala. Por um instante a perdi, mas logo consegui contato visual com a inimiga, que era menor do que a parente do outro dia.

Respirei fundo e pensei: eu posso fazer isso.

Me aproximei (em pânico) e apertei o gatilho, quer dizer o spray.

E como no outro dia tive que perseguir a infeliz com o jato salvador.

Ela até tentou se esconder atrás de uma sacola, depois na porta da cozinha, suplicou por clemência, até que não resistiu.

Estrebuchou e logo jazia no cantinho.

Olhando o cadáver e tossindo pelo efeito do veneno, eu lamentei a batalha. Mais uma disputa territorial insana, pautada pelo medo e com uso de armas químicas.

Poxa, não sou de briga, foi legítima defesa.

Achei melhor fechar janelas antes que a família aparecesse para reivindicar o corpo.

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E quem dormia depois disso?

 


Imagem: mundocool.com.br

 

“Você pode ser o que quiser, menos professora”

Dia do Professor na Escola. A pequena esquisita da direita sou eu, aprendendo a caminhar com minhas próprias pernas.
Dia do professor na escola – aprendendo a caminhar com minhas próprias pernas (sim, sou a esquisitinha da direita).

 

“Você pode ser o que quiser, menos professora. Professora não pode”.

É o que dizia minha mãe nos anos 80, 90.

Ela falava que a profissão não era valorizada. E acho que isso ela aprendeu na marra.

Ainda quando cursava Letras, ficava furiosa quando diziam que era “Faculdade-Espera-Marido”. Porque minha mãe acreditava que professor mudava o mundo, sabe?

Além de anos trabalhando na sala de aula, ela cursou Pedagogia e foi também coordenadora de ensino.

Quando eu tinha uns 6, 7 anos, estudei numa escola onde minha mãe trabalhava. No dia em que a professora de língua portuguesa faltava, era ela a substituta. 

Eu não gostava de ter aula com a minha mãe. Ela me chamava de “Maria Lília”, fazia cara de brava e me cobrava mais do que os outros alunos. Só porque eu era filha dela.

Quando eu tinha uns 10, 11 anos, minha mãe trabalhava numa escola pública em uma região muito pobre, onde as crianças iam pra escola “só” por causa da merenda. A qualidade do ensino ia ladeira abaixo e a violência começava tomar conta das salas de aula. Ela voltava triste pra casa.

Ainda nos anos 90, ela pediu exoneração. Jogou a toalha. Não aguentou aquele cenário.

Hoje ela faz outra coisa. Mas quando me perguntam “qual a profissão da sua mãe?”, eu respondo, com o maior orgulho:

Professora

Porque não existe ex-professora, né?

E quem tem sabe o privilégio que é uma mãe professora.

Certeza que isso fez diferença na minha alfabetização, no meu processo de aprendizado e me fez ganhar gosto pelas palavras.

Minha mãe professora me ensinou a fazer perguntas e buscar respostas, ainda que elas não estejam nos livros.

Eu não escolhi ser professora, como a minha mãe.

(eu não ousaria)

Virei jornalista.

(coitada da minha mãe!)

Eu até sou um pouco parecida com ela.

Tanto que se um dia eu tiver uma filha, vou dizer:

“Seja o que você quiser, menos jornalista. Jornalista não pode”.

E se a criança errar muita crase e concordância na lição de casa…

…eu vou chamar a minha mãe!

🙂

Porque seja dentro ou fora da sala de aula, professor muda o mundo, sim!

Feliz Dia do Professor!

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Deixo aqui uma cena do filme “Sociedade dos Poetas Mortos” (1989). Um clássico imperdível pra quem acredita que a educação pode mudar o mundo. Clica aí e Carpe Diem:

https://www.youtube.com/watch?v=vyds5y-d7oQ

 


Foto: arquivo pessoal.