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Ali na sarjeta

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Manhã cinza e fria em SP.
Na sarjeta da Engenheiro Ary Torres vejo de relance sonhos de 2017.
De todo o resto de uma vida idealizada.

Ali, na sarjeta, os sorrisos, as mãos entrelaçadas, os olhares de cumplicidade, as noites de alegria.
O cachorro vira-lata, as viagens pra montanha, as macarronadas de domingo.
Ali na sarjeta os filhos que eles não vão ter.

Ali na sarjeta um beijo seco, amarelado pelo tempo, murcho, sucumbindo à inanição sem cuidado e atenção.
O resto doloroso e espinhoso do amor da vida toda.
Ali na sarjeta o último gesto desnudo, a busca de um laço, a tentativa falida entregue num só maço.

Ali na sarjeta, um ponto vermelho sobre cinza, feito sangue esfriando sobre asfalto cru.
O último suspiro, quase sem pulso depois do último impulso.

Ali na sarjeta, de relance, feito morte instantânea por acidente.

Eram rosas vermelhas.
Eram flores jogadas naquela sarjeta.

Vi assim, de relance.
Ali na Engenheiro Ary Torres.

 


Imagem: eutanasiamental.com.br

O homem das flores – parte I

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“Se eu chegasse cinco minutos antes”.

Ah, essa tal condicional!

Por cinco minutos eu já perdi trem, compromisso e alguém. E por cinco minutos ontem eu persegui um homem, digo, umas flores, quero dizer, o mistério do homem das flores.

Tá, eu #vou_tecontar

Era uma vez o mês passado, uma segunda ou terça-feira.

Saí do trabalho no horário habitual, apressada pra não perder meu compromisso habitual. Tudo exatamente como habitual. Até a parada no farol – que sempre fecha na minha vez. Aquela olhadinha em volta – habitual – e vi passar um homem jovem, com um maço de flores na mão, que ele carregava de um jeito meio sem jeito. Tava na cara, flores pra ele não eram coisa habitual. O homem atravessou a rua, o farol abriu, a vida seguiu.

Na semana seguinte a cena se repetiu. Horário habitual, farol habitual e, ora, ora, outro homem com flores. Eram outras flores. Só que era o mesmo homem.

Será?

Achei que sim. Mas certeza só tive uma semana depois, com flores do campo. E aquele homem entrou pro meu cenário habitual.

O que o levaria a fazer tudo sempre igual?

Pergunta errada. Eu também faço meu igual. Mas meu igual não tem flores, quer dizer, passou a ter, as flores dele, aliás,

flores de quem?

No habitual seguinte, eram tulipas. Seriam pra esposa? Terreiro? Avó doente? Decoração de ambiente?

Eu precisava entender o habitual daquele homem, digo, daquelas flores. E fiz um plano:

“Se eu chegasse cinco minutos antes”.

Se eu chegasse cinco minutos antes poderia dobrar a esquina, estacionar o carro na garagem de casa e andar até onde ele comprava as flores. E ele estaria em sua rotina habitual, escolhendo, comprando, pagando.

Era isso.

No dia seguinte saí do habitual, digo, do trabalho cinco minutos antes. Mas o trânsito atrapalhou, perdi a condicional, perdi as flores, o plano falhou.

Passou.

Semana passada o habitual me mostrou flores do campo e um homem mais à vontade com aquele pacote. Ele atravessou a rua, o farol abriu, mas a vida não seguiu.

Até ontem.

Ontem não usei a condicional e não saí cinco minutos antes. Ontem o trabalho atrapalhou e saí uns cinco minutos depois. Ontem o trânsito estava melhor do que o habitual e chegou o dia em que eu cheguei cinco minutos antes. Eu virei a esquina, estacionei o carro na garagem e andei até o local das flores.

Lá estava ele.

Lá estavam elas.

Eram margaridas.

Fiquei ali como quem escolhe um vasinho. Escutei a vendedora perguntar se “ela” gostou das flores da semana passada e ele dizer “sim”. E só. Sem mais.

Então arrisquei: “às vezes te vejo passando com flores”.

Na verdade eu queria dizer “toda semana te vejo passando com flores, no mesmo horário, no mesmo lugar, então me fala logo o que isso significa ou eu não vou conseguir dormir essa noite”.

Mas eu não queria parecer a maníaca das flores, né? Eu não queria asssustar o homem das flores.

E ele sorriu.

E, sim, ele contou.

Há um mês, toda semana, ele leva flores pra mulher. Há um mês ela sofreu um acidente. Há um mês não foi só o susto. Há um mês ela perdeu o bebê.

Não vou explorar o drama do homem das flores, mas naquela noite do acidente a mulher esperava por ele. Ele estava atrasado.

Então eu entendi que as flores não eram só pra ela. Eram pra ele também.

E antes de seguir o trajeto habitual, com o maço de flores na mão, ele disse uma coisa sobre aquele dia que não lhe sai da cabeça:

– “Se eu chegasse cinco minutos antes”.

Então ontem eu saí do habitual.

Ontem eu comprei flores.

 

 

Quer saber a segunda parte dessa história? Acesse: 

http://voutecontar.blog.br/o-homem-das-flores-parte-ii/

 


Foto: arquivo pessoal (obra do Bansky).